Meus Discos e Livros
... e algo mais
... e algo mais
Quando eu morder a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
"Embora vigies, a morte conspira nas entrelinhas", é o que diz a epígrafe de Alcides Buss no primeiro romance de Luis Fernando Verissimo. Semana passada a morte concluiu com sucesso sua conspiração de décadas, levando consigo o nosso autor mais querido. Não o levou de surpresa, porém, e não nos deixa em sua ausência. Sujeito inteligentíssimo, o superlativo Verissimo já vigiava a morte há tempos e ideara umas tantas maneiras de permanecer, de contrariar com suas linhas o silêncio eterno.
Diz que andava perdido até os trinta anos, quando foi ao acaso resgatado pelo jornalismo. Pôs-se a trabalhar no jornal sem grandes objetivos, "apenas para pagar o uísque das crianças", e ali revelou-se para si e para os outros um de nossos melhores cronistas. A crônica lhe era a forma perfeita, sobretudo por sua indefinição característica, pela possibilidade de fazer dela o que bem entendesse, de criar seus personagens memoráveis, de se entregar ao comentário político ou futebolístico. Era ao menos o que dizia em entrevistas, o elogio da liberdade que ele soltava com seu olhar de esguelha, ligeiramente irônico, como quem tem mais a dizer mas opta pelo expressivo laconismo. Eis a primeira face de seu legado: ter ajudado a perpetuar o mais brasileiro dos gêneros, ter-se tornado um de seus grandes artífices.
Mas o valor de sua escrita para a nossa cultura vai além da qualidade de seus textos. Arrisco uma hipótese sem muito fundamento, uma hipótese de cronista. Que Verissimo produziu uma inflexão essencial no trabalho que vinha fazendo Nelson Rodrigues, em sua leitura da singularidade brasileira, da imoralidade e da indecência que nos descreveriam, que qualificariam as relações que travamos por aqui. No humor com que enxergava a vida privada, humor ágil, sagaz, inocente, Verissimo deu feições mais cômicas à tragédia narrada por Rodrigues, permitindo ao país um suspiro aliviado, autorizando que ríssemos de nós mesmos, que não só nos mortificássemos. Somos menos dramáticos em suas páginas: somos ridículos e sobrevivemos a isso. Eis outra face de seu legado pela qual deveríamos agradecer.
Um leitor poderia estranhar a grandiloquência com que elogio essas páginas, que não pareciam desejar mais do que ser ligeiras e agradáveis. Mas eu insisto porque vejo no texto de Verissimo qualidades que o autor preferia manter escondidas, por estratégia pessoal. A erudição e a eloquência de seus livros são parte do prazer que propiciam, mas estão disfarçadas sob a pátina do humor para possibilitar a presença do que poderia ter peso excessivo, uma reflexão existencial sobre a vida. Com humor acolhemos melhor os caminhos de sua inteligência; com humor, a sabedoria que ele foi arrebanhando pela vida soa despretensiosa, palatável, amena.
Talvez por isso, também, acabe se situando na dimensão do afeto a parte mais relevante de sua herança crítica - com perdão do despautério. Lembro dos bonequinhos de Verissimo que tomavam as livrarias há algumas décadas, fosse na capa de seus livros ou como estatuetas modestas nas vitrines. Lembro da simpatia fenomenal que suscitavam, que aquele homem suscitava apenas por existir e escrever. Aquela miniatura tão propensa a provocar sorrisos era a expressão de como um país podia se apaixonar por um escritor, podia apreciá-lo com uma candura irresistível.
Lembro também de uma leitura antiga, de um conto seu a que voltei várias vezes ao longo das décadas. Falo de "Conto de verão nº 2: Bandeira Branca", a história de Píndaro e Janice, um menino e uma menina que vão se encontrando ao longo dos anos em bailes carnavalescos, e se procuram, e se desejam. Uma história de amor desigual que nos leva a um só tempo à comoção e ao riso. Encontram-se os dois depois de anos, por acaso, para o desfecho. "Digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?" É uma história aguda de paixão que se torna declaração da incomunicação humana quando passamos à mente da menina: "Como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles?" Um conto desses, perfeito e sensível, basta para que um autor se inscreva na história da nossa literatura.
"O que é a vida, afinal?", pergunta uma cobra a outra cobra, em tantas tirinhas geniais em que Verissimo também soube imprimir sua marca. "A vida é isso aí", diz a segunda cobra, sempre um pouco perdida, e depois emenda: "Entre outras coisas, claro". "A vida é um hiato de perplexidade entre dois vazios", insiste a primeira cobra, e a outra responde: "E eu aqui sem saber de nada". Saber tudo e ao mesmo tempo não saber nada, e saber dizê-lo com palavras que levam ao riso e palavras que comovem, sempre exatas, nisso talvez consista a arte de Verissimo. Mas ele não haveria de concordar; ele conspira com o silêncio e prefere continuar a dizer tantas coisas sem mais tomar a palavra.